Fui convidada pela minha mãe para acompanhá-la a um velório de um antigo vizinho de tempos remotos. Ele morreu aos 54 anos de infarto. Toda morte, ainda mais prematura, é motivo de comentários do tipo “morreu tão jovem”, “ontem mesmo vi ele e estava bem”, “hoje estamos aqui e amanhã não sabemos”. E foi isso que minha mãe foi dizendo enquanto íamos para o local da homenagem.
Ao chegar lá, reencontramos velhos conhecidos, já que eu havia nascido naquele mesmo local, uma pequena capela do interior da minha cidade. Adorei revisitar o velho campanário, a pequena igreja, olhar para rostos familiares, embora mais maduros e cansados. E nesse meio tempo já me dera conta de que meu rosto também estaria sinalizando a eles o passar dos tempos.
Naturalmente, minha mãe já reencontra uma velha amiga, e senta ao seu lado. Eu faço o mesmo. E, surpresa, identifico a Dona Olívia. Um filme passa pela minha cabeça. Era na casa dela que fazíamos o que vestíamos. A costureira Olívia era talentosa. Criava e reformava roupas, trançava palha de trigo e com ela fazia sacolas e chapéus. Eu ficava maravilhada ao ver a casa dela tão grande, mas ao mesmo tempo tão cinza. Não havia pinturas. Ela era muito simples, como sua dona. Bem diferente da minha casa na época, que embora grande, era muito colorida. Dona Olívia era uma das vizinhas mais pobres que tínhamos, e que morava num lugar distante e de difícil acesso, praticamente no meio do mato.
Volto à realidade. Ali sentada fico atenta à conversa da minha mãe e ela. Minha mãe se desculpava por ainda não ter pagado o chapéu que Dona Olívia fez para o meu pai. E, na mesma hora, sanou a sua dívida. Dona Olívia, como sempre, expressou tranquilidade, dizendo que não havia problema. Neste vai e vem de conversas curtas, Dona Olívia comentou com minha mãe que agora morava em outra cidade, a minha. E que não se demoraria no velório pois teria que pegar o ônibus. Como que prontamente quase gritei: “eu lhe dou uma carona”. Ela agradeceu, mas salientou que não queria incomodar. No final das contas, tudo certo. Eu a levaria e a deixaria em casa. Não perderia, por nada no mundo, saber mais de como tinha andado a vida da Dona Olívia após eu ter me mudado.
Quase 40 anos se passaram. O que teria acontecido com ela, com seus dois filhos pequenos, com seus talentos? Claro, eu já havia tido uma pista de que palha ainda era com ela, por causa do chapéu do meu pai.
Já em viagem, Dona Olívia me contou que havia enviuvado há alguns anos, e que seus filhos eram maravilhosos com ela. Ela relembrou os velhos tempos, e contou-me que, naquela época, chegou a ficar um ano sem comer pão, para dar aos filhos, atitude da qual não se arrepende. Também me disse que agora mora perto de um deles, e que ambos eram bem-sucedidos e carinhosos, a ponto de a ajudarem sempre que necessário, e levá-la com eles a todos os passeios. Até demais, segundo ela, que às vezes preferia ficar em casa e praticar seus talentos, agora resumidos ao trançar dourado.
Mas a conversa não parou por aí. Ela me contou que já visitou a Itália inúmeras vezes, com seus filhos. E que adorou conhecer o Papa. Itália? Pergunto surpresa. Que lindo! Ela disse que era um sonho de criança. Eu pensei comigo, estupefata: ela tinha sonhos! Nunca imaginaria isso daquela senhora pobre que fazias minhas calças vermelhas boca-de-sino. Sim, ela sonhava, ela lutava, ela agradecia, ela realizava. Me senti abençoada em estar ao lado de alguém de quase 80 anos com tanta sabedoria. Eu queria abraçá-la ali mesmo. Mas estava dirigindo. Chegamos à casa dela. Ela então fez questão de me mostrar seu espaço. Suas artes. Tudo muito simples, como ela sempre foi. E ganho presentes, mini chapéus e sacolas para minhas filhas, de palha, claro. Quanta generosidade. Nos despedimos, nos abraçamos. Ela demonstra não saber o que fazer para agradecer a simples carona, sem saber o quanto eu era grata por ela me mostrar o que é dar a volta por cima. A resiliente Dona Olívia reforçou o meu respeito e a minha admiração por ela. Alguém que não havia sido esquecida pela vida, nem por mim, que a guardava em minhas mais queridas lembranças, e que ainda tem tanto a ensinar.
Publicado em 27 de agosto de 2018 por mirelaverdicoach
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